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Friday, 20 January 2023 12:01

A (IN) OBSERVÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA NAS AÇÕES POSSESSÓRIAS ENVOLVENDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE LUTA PELA TERRA NO BRASIL

Escrito por Carlos Henrique de Morais Souto Pantoja

Esse artigo trata da (in) observância da função social da terra nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra no Brasil. O direito de propriedade está previsto no artigo 5º, caput e inciso XXII, bem como no Título III do Código Civil, que dispõe sobe a sua proteção, sendo que, as ações possessórias são reguladas pelos artigos 554 e seguintes, do Código de Processo Civil. 

 

RESUMO

Esse artigo trata da (in) observância da função social da terra nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra no Brasil. O direito de propriedade está previsto no artigo 5º, caput e inciso XXII, bem como no Título III do Código Civil, que dispõe sobe a sua proteção, sendo que, as ações possessórias são reguladas pelos artigos 554 e seguintes, do Código de Processo Civil. Por outro lado, a função social da propriedade é estabelecida pelo inciso XXIII, do artigo 5º, bem como estabelecidos os seus requisitos no âmbito rural no artigo 186, ambos da Constituição Federal de 1988. No entanto, por meio dos estudos do Relatório “A atuação do Poder Judiciário nos Conflitos Agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos Estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011)”, é possível perceber que a função social da terra não está sendo observada nas ações possessórias, pelo menos nesses Estados. A partir disso, a problemática desse artigo gira em torno da não concretização do artigo 186 da CF/88. O objetivo geral é compreender a função social da terra nas ações possessórias no Brasil. Especificamente, pretende-se: a) fazer uma breve revisão histórica sobre o direito de propriedade privada individual no Brasil; b) compreender os procedimentos a serem adotados nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra; c) compreender a (in) observância da função social da terra, pelo Poder Judiciário no Brasil. O método utilizado nessa pesquisa é o hipotético-dedutivo, por meio da revisão bibliográfica e documental. O referencial teórico são os estudos sobre colonialidade do poder, de Aníbal Quijano. A hipótese é que o Poder Judiciário não observa a função social da terra, nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra, porque estão sob a influência do poder da elite latifundiária dominante.

Palavras chave: Direito Agrário. Ações Possessórias. Função Social da Terra. Direito de Propriedade.

 

INTRODUÇÃO

Esse artigo trata da (in) observância da função social da terra nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra no Brasil. O direito de propriedade está previsto no artigo 5º, caput e inciso XXII, bem como no Título III do Código Civil, que dispõe sobe a sua proteção, sendo que, as ações possessórias são reguladas pelos artigos 554 e seguintes, do Código de Processo Civil. 

Por outro lado, a função social da propriedade é estabelecida pelo inciso XXIII, do artigo 5º, bem como estabelecidos os seus requisitos no âmbito rural no artigo 186, ambos da Constituição Federal de 1988. Além disso, existem outras limitações ao direito de propriedade, de caráter ambiental, trabalhista e no que se refere ao direito de propriedade coletiva, principalmente dos povos indígenas e quilombolas, bem como às políticas de reforma agrária. 

No entanto, nas constituições e legislações antecedentes, o direito de propriedade era sagrado, absoluto, inviolável e individual, sendo que o Estado nada mais era do que o garantidor desse direito absoluto, bem como todo o ordenamento brasileiro era em consonância com essa ideia. E, a Constituição Federal de 1988, apesar de estabelecer essas limitações ao direito de propriedade, está cheia de armadilhas para o seu não cumprimento.

A pesquisa também trata da atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários decorrentes da luta pela terra e a criminalização dos movimentos sociais, diante da importância e especificidade da terra. Nas palavras de Marés (2003, p. 11): “As sociedades humanas sempre tiveram, em todas as épocas e formas de organização, especial atenção ao uso e ocupação da terra. A razão é óbvia: todas as sociedades tiraram dela seu sustento”.

No entanto, mesmo sendo a terra essencial a sobrevivência de todos os seres humanos, quando se passou a valorizar mais os produtos da terra do que ela mesma, ela passou a ter “donos”, de um modo excludente, acumulativo e individual (MARÉS, 2003).

Nessa configuração sempre esteve presente a desigualdade, mas foi com o mercantilismo que se deu a construção da propriedade individual e com o advento do capitalismo a consolidação da propriedade absoluta (MARÉS, 2003).

Toda a riqueza é proveniente da terra e dos trabalhadores, mas na análise capitalista toda terra é monopolizável e alienável. O sistema capitalista dissociou completamente a conexão entre posse da terra e a terra (HARVEY, 2013 apud MARX, 1996).

Nesse ponto é importante dizer que, desde a invasão do território brasileiro pelos portugueses, apesar do caráter feudal da formação inicial dos latifúndios, nota-se que a organização da produção e a apropriação da terra foram influenciadas pelo capitalismo, o qual tem como pilar a propriedade privada (STÉDILE, 2011).

Passando pelas capitanias hereditárias, com modo de distribuição de terras por meio das sesmarias, é possível ver nascer os latifúndios e minifúndios dominiais, que foram consolidados pela Lei de Terras de 1950, gênese da problemática da questão agrária no Brasil (STÉDILE, 2011).

Nesse sentido, por meio dos estudos do Relatório “A atuação do Poder Judiciário nos Conflitos Agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos Estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011)”, é possível perceber que a função social da terra não está sendo observada nas ações possessórias, pelo menos nesses Estados. 

A partir disso, a problemática desse artigo gira em torno da não concretização do artigo 186 da CF/88. O objetivo geral é compreender a função social da terra nas ações possessórias no Brasil. 

Especificamente, pretende-se: a) fazer uma breve revisão histórica sobre o direito de propriedade privada individual no Brasil; b) compreender os procedimentos a serem adotados nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra; c) compreender a (in) observância da função social da terra, pelo Poder Judiciário no Brasil. 

O método utilizado nessa pesquisa é o hipotético-dedutivo, por meio da revisão bibliográfica e documental. O referencial teórico são os estudos sobre colonialidade do poder, de Aníbal Quijano. 

A hipótese é que o Poder Judiciário não observa a função social da terra, nas ações possessórias envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra, porque estão sob a influência do poder da elite latifundiária dominante.

 

1 BREVE HISTÓRICO SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE DA TERRA NO BRASIL

O espaço urbano e rural brasileiro da atualidade formou-se a partir da colonização europeia, uma vez que esse foi o processo em que os portugueses chegaram neste território e os declararam como conquistado, povoando e desenvolvendo a terra de acordo com os seus interesses econômicos (FARIA, FERREIRA e TÁRREGA, 2018). 

Por esse motivo, antes de adentrar nos regramentos sobre as ações de reintegração de posse, é necessário tecer algumas breves considerações acerca do direito de propriedade, que se mostra como o grande centro nesse tipo de ação judicial que é regulada pelo processo civil. 

Nesse sentido é o pensamento de Rocha, et al (2015, p. 63): “O conhecimento da história é de fundamental importância para entender não só os institutos jurídicos atuais, mas, também, qual a origem e como se deu o processo de concentração da propriedade”.

As origens do direito de propriedade remontam aos anos de 450 a.C, com o advento da Lei das XII Tábuas, que já previa a medição de limites quando a posse da terra fosse conflitante. No entanto, nessa época, a posse e o uso da terra eram comunais e dela as sociedades produziam para a subsistência (RCOHA, et al, 2015, SOUZA FILHO, 2003).

Podemos afirmar que o instituto da propriedade privada tem as suas origens históricas no Direito Romano, sobretudo a partir dos conceitos de morada habitual, cultura permanente, usucapião, arrendamento, demarcação de limites, dentre outros. 

Porém, a propriedade enquanto cercar uma porção de terra e chamar de seu tem o seu nascedouro na Inglaterra, em meados dos Séculos XIV e XV, com o desenvolvimento dos enclosures (cercamentos), que consistiam na tomada de terra de uso comum e coletivo (do povo) pelos nobres, para o apossamento, despovoamento e transformação da terra em grandes espaços de pastagens (POLANYI, 2000).

Com a formação do Estado e do Direito na concepção que adotamos hoje no Brasil, a Europa criou o conceito de propriedade privada, sagrada, individual e absoluta, teorizando esse conceito, sendo que o Estado se fundamentava nesse direito absoluto e o Direito servia para garanti-lo. O sistema feudal foi substituído pelo capitalismo, que se expandiu pelo mundo por meio das chamadas Grandes Navegações (ZIBETTI, 2010).

No Brasil, até o século XV, não existia a propriedade privada, sagrada, individual e absoluta da terra no território brasileiro, já que os povos originários que aqui habitavam viviam de forma coletiva, sem interesse de lucro. Com a colonização, primeiro os portugueses tentaram o comércio com os povos originários.

No entanto, ao perceberem a dimensão territorial, bem como todas as riquezas naturais existentes, resolveram ocupar a terra, expulsar e tentar escravizar os indígenas, bem como criaram uma das mais degradantes formas de trabalho de todos os tempos: a escravidão dos povos africanos. 

Sobre o tema, Faria (2019, p. 440) leciona que:

(...) A escravidão significou uma das mais cruéis formas de submissão do trabalho humano, condição que negava aos africanos escravizados, além da liberdade, o mínimo de dignidade humana. O escravo era considerado propriedade, uma coisa, alienável e sem direitos, objeto de comercialização, uma mercadoria (...).

Portanto, primeiro os escravos eram considerados como propriedade. Na aplicação do sistema sesmarial, modelo português que consistia em doar uma porção de terra a um nobre que dela pudesse cuidar, desenvolver economicamente e retornar parte do lucro à Coroa Portuguesa. 

Esse sistema, aliado a formação das Capitanias Hereditárias, que originaram os Estados da Federação de hoje, originou o problema do latifúndio (grande porção da terra nas mãos de um único proprietário), em contradição ao minifúndio (pedaço de terra muito pequeno, no qual o agricultor às vezes não conseguia tirar dela nem o próprio sustento (FARIA, FERREIRA e TÁRREGA, 2018).

A Constituição Imperial de 1824 garantia o direito individual e absoluto da propriedade privada, Mesmo com a abolição da escravidão no Brasil, o direito de propriedade continuou absoluto, sendo que a terra passou a ser comercializada, conforme dispôs a Lei de Terras de 1850. 

Nessa mesma direção, mesmo após a Independência do Brasil, foi esse conceito de propriedade privada, sagrada, absoluta e individual, o que foi seguido quase que de forma literal pelas demais Constituições brasileiras, sendo que somente com o Estatuto da Terra, promulgado no ano de 1964, foi prevista que a propriedade deveria cumprir uma função social. Porém, os militares que assumiram o poder cuidaram para que essa lei não passasse de letra morta (FARIA, FERREIRA e TÁRREGA, 2018).

É importante ressaltar que, o Código Civil de 1966 avalizava esse conceito absoluto de propriedade e o Código de Processo Civil de 1973 tratava de regrar os procedimentos para a consolidação e manutenção desse direito, sendo que só com a Constituição Federal de 1988 foram criados certos limites ao direito de propriedade (BRASIL, 1966; BRASIL, 1973).

Isso porque prevê a função social tanto da propriedade urbana, quanto rural, bem como relativiza o caráter absoluto da propriedade privada, uma vez que limita a degradação ambiental, estabelece regras importantes no âmbito do direito do trabalho e reconhece as propriedades coletivas, dos povos indígenas e quilombolas (BRASIL, 1988).

O Código Civil de 2002 e as alterações no Código de Processo Civil de 1973 tiveram que fazer as adaptações necessárias na legislação brasileira a respeito do direito de propriedade, para que obedecessem à Carta Maior de 1988, também chamada de Constituição Cidadã (BRASIL, 2002). No mesmo sentido seguiu a promulgação do Código de Processo Civil de 2015.

 

2 AS AÇÕES POSSESSÓRIAS ENVOLVENDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE LUTA PELA TERRA

O direito brasileiro, ainda que imponha certos limites ao direito de propriedade privada, também o prevê constitucionalmente, no artigo 5º e inciso XXII, da Constituição Federal de 1988. Acompanhando a Carta Maior, o Código Civil de 2002 prevê que: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”.

Sobre o conceito de posse, Rocha, et al (2015, p. 68) apud Picard (1954, p. 54) afirma o seguinte:

{...} a posse possui a natureza de interesse jurídico, posto que além do valor que representa para a pessoa ou coletividade, possui um valor social e a sua violação reflete sobre os interesses da sociedade, por isso o direito cria mecanismos para a sua proteção. Neste contexto, o direito de propriedade somente se reconhece a partir da sua função social, expressa através da posse agrária, inserindo-se no sistema jurídico pátrio instrumentos que permitem excluir o domínio estéril do meio social, com destaque aos direitos e interesses das camadas sociais que sempre estiveram excluídas do acesso à terra. A propriedade sem função social não tem o status que antes se lhe atribuía, criando o Estado meios de retirar-lhe do meio social quando não cumpra o seu especial caráter, destinando-a a um fim de utilidade social, criando mecanismos que permitam a reinserção da propriedade como utilidade social.

Apesar disso, é importante dizer que, os regramentos jurídicos de proteção são direcionados ao direito de propriedade. A posse pelo não proprietário é exceção, bem como nos ensina Fachin (1988, p. 14):

{...}Tem trânsito livre na ciência jurídica moderna a noção de que a posse é mera exteriorização da propriedade, admitindo-se excepcionalmente a figura do possuidor não proprietário. Enjaular o fenômeno possessório dessa forma corresponde a uma visão superada pela realidade, mas ainda não reconhecida. Esse confinamento hoje inaceitável é contraditado pela prioridade histórica da posse sobre a propriedade. Cronologicamente, a propriedade começou pela posse, geralmente posse geradora da propriedade, isto é, a posse para a usucapião. Além disso, enquanto vinculada à propriedade, a posse é um fato com algum valor jurídico, mas, como conceito autônomo, a posse pode ser concebida como um direito.

O procedimento sobre as ações de reintegração de posse, por exemplo, está estipulado pelo Código de Processo Civil, mais especificamente, nos artigos 560 a 566. Os mais conflituosos desses artigos, no que se refere às ações de reintegração de posse envolvendo os movimentos sociais de luta pela terra, são os artigos 562 e 563, uma vez que determinam que, o proprietário que justificar a reintegração da posse, terá a liminar deferida, sendo que essa “justificação” é entendida como a apresentação do título de propriedade.

Acontece que, as ações possessórias que envolvem os movimentos sociais de luta pela terra, tem a especificidade de se tratar de direito social legítimo dos ocupantes, assim chamados de réus invasores nesse tipo de ação. A função social da terra e o Direito Agrário devem ser considerados em ações desse tipo, mas, na prática, ao menos no Estado de Goiás, no âmbito do Poder Judiciário não são observadas. 

Enfim, diante da importância da questão agrária no Brasil, a qual requer proteção, sobretudo no tocante ao direito do acesso à terra, nota-se a necessidade de análise e reflexão acerca da função social da terra e da importância de sua observância nas decisões judiciais. A Constituição Federal de 1988 tem como fundamento básico a dignidade da pessoa humana, consagra o direito do acesso à terra e ao desenvolvimento.

Ao mesmo tempo que estabelece que a propriedade rural deve obrigatoriamente atender a certos requisitos para que cumpra com sua função social. Em caso de descumprimento, a desapropriação para fins de Reforma Agrária é medida impositiva, mas que infelizmente não vem acontecendo na prática. 

Compreende-se que o direito à terra é um direito humano e fundamental, pois apesar de o ordenamento jurídico civilista consagrar a propriedade como um direito quase absoluto, a Constituição Federal vem impor limites a esse direito, que entra em confronto com direitos mais relevantes.

Nota-se que nas Constituições brasileiras a terra sempre foi considerada como propriedade, que sempre foi vista como um direito natural e absoluto. Destaca-se a criação do Estatuo da Terra em 1964, pela ditadura militar. Essa lei veio definir o que é latifúndio e minifúndio e atribuir ao Estado a responsabilidade de controlar a questão agrária no país (PALMEIRA, 1989).

É relevante observar que sempre houve lutas pela terra no Brasil, sendo destaque as Ligas Camponesas, criadas pelo Partido Comunista Brasileiro, criadas após o Governo Vargas, mas que foram duramente inviabilizadas pela rigidez institucional da época (MORAIS, 2012).

Não se pode deixar de destacar a Guerra Contestado (1912–1916), no Sul, de Canudos (1896 – 1897), no Nordeste, e de Formoso (1950-1960), no Centro Oeste, marcos históricos da luta pela terra no Brasil. E também a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos marcos mais importantes da Reforma Agrária Brasileira.

Nota-se que os conflitos agrários da atualidade são decorrentes do confronto entre o direito de propriedade (previsto constitucionalmente e amparado na lei civil) e a função social, também estabelecida na Carta Maior do país.

Antes de tudo, o direito à terra é um direito humano, nas palavras de Reis (2012, p. 5):

À medida que cresceu a percepção da importância da rede transnacional de apoio, composta tanto dos grupos de direitos humanos quanto dos grupos ambientalistas, a demanda pela terra foi assumindo cada vez mais a forma da demanda por um direito humano. O regime internacional, na sua dimensão formal e informal, reconhece a ligação entre tribos e povos e terras através da cultura e reivindica a posse da terra como condição de sobrevivência não apenas física, mas também cultural de grupos indígenas. No Brasil, essa interpretação também é utilizada pelos remanescentes de quilombos para reivindicar a posse da terra; reivindicação esta que foi reconhecida pela legislação brasileira. No entanto, a concepção nascida dos movimentos sociais brasileiros e de grupos como a CPT é mais ampla do que esta e pretende o reconhecimento da posse da terra como um direito humano.

O artigo 186 da Constituição Federal de 1988 estabelece que toda propriedade deve cumprir obrigatoriamente sua função social e estipula requisitos, no entanto, na prática nem sempre isso é observado, especialmente pelos juízes nas ações possessórias que envolvem luta pela terra.

 

3 O PODER JUDICIÁRIO E A LUTA PELA TERRA: A ELITE LATIFUNDIÁRIA DOMINANTE COLONIAL

Atualmente, segundo dados do IBGE (2017), o Brasil tem uma área territorial de 8.515.759,090 km², sendo que os Assentamentos de reforma agrária, de acordo com dados do INCRA (2016), constituem apenas 884.131.6 km². Esses números demonstram que muito ainda há que se fazer pela reforma agrária no país.

De acordo com dados do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), o Brasil ainda é um dos países com maior concentração de terras. Constatou-se que entre os anos de 2011 e 2014 aconteceram os piores indicadores da Reforma Agrária dos últimos 20 anos (MST, 2015).

Na atualidade, nota-se que os conflitos pela terra crescem por causa da expansão da pecuária e das monoculturas, onde há um alto componente especulativo no manejo dos grandes latifúndios, com fortes ligações com políticos (CPT, 2016).

Conforme dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de 2015 mais de 80 mil famílias estiveram envolvidas em conflitos por terra no Brasil. Predominou como autores das ações contra os ocupantes (Sem-Terra) os fazendeiros e grileiros. Mais de 13 mil famílias foram despejadas, com a presença marcante da violência (CPT, 2015).

Diante desse quadro, a atuação dos movimentos sociais é muito importante na luta pela terra, sendo um dos mais relevante mecanismos de reivindicação de direitos. Por meio da ocupação de terras, organizadas sobretudo pelos movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e diversos outros espalhados pelo Brasil, as pessoas buscam a concretização do seu direito à terra, garantido pela Constituição Federal (TÁRREGA; RIBEIRO, 2015).

OS movimentos sociais de luta pela terra ocupam terras de latifúndios improdutivos, os quais descumprem a função social prevista no artigo 186 da Carta Maior. É dever do Estado desapropriar terras que não cumprem a função social. No entanto, diante das ocupações de terras pelos movimentos sociais, os proprietários dos latifúndios ocupados ingressam no Poder Judiciário reivindicando o seu direito de propriedade, por intermédio das ações possessórias, sobretudo a ação de reintegração de posse.

Segundo dados do Observatório da Justiça Agrária, no Relatório sobre a Atuação do Poder Judiciário nos Conflitos Agrários Decorrentes de Ocupações de Terra por Movimentos Sociais nos Estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011), as ações possessórias que envolvem ocupações de terras por movimentos sociais não estão sendo decididas de acordo com os critérios definidos na Constituição Federal e nem concretizando o direito à terra previsto constitucionalmente.

Nessas ações está em jogo o direito à terra versus o direito de propriedade. Infelizmente, da análise do Relatório em estudo, os magistrados, na maioria dos casos, não fazem uma leitura criteriosa dos conflitos agrários decorrentes da ocupação de terras, porque além de não garantir diversos direitos inerentes ao contraditório e a ampla defesa, também são silentes sobre a função social da propriedade prevista na Constituição Federal de 1988.

Segundo o Relatório da Atuação do Poder Judiciário nos Conflitos Agrários decorrentes de Ocupação de Terras por Movimentos Sociais nos Estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2012), elaborado a partir da análise de processos judiciais, especificamente no Estado de Goiás, as ações de reintegração de posse que envolvem os movimentos sociais de luta pela terra aplicam puramente o procedimento previsto no Código de Processo Civil.

O mais grave é que o documento acima citado, também constata que, ainda que o Código de Processo Civil seja a lei utilizada para ditar as regras procedimentais das ações de reintegração de posse que envolvem os conflitos agrários, por vezes nem mesmo seguem à risca todos os ritos do Código Processual.

Isso porque, foi identificado a ausência de citação válida do polo passivo, que na maioria das vezes é citado por edital, ainda que não esgotados todos os meios de citação, conforme prevê o regramento acerca das citações processuais civis.

Além disso, os movimentos sociais e os seus integrantes são quase sempre nominados de “invasores”, em total desrespeito ao aspecto histórico de desigualdade na distribuição e na alta concentração de terras no Brasil, demonstrando que os nossos magistrados, na maioria dos casos, não estão preparados tecnicamente para analisar a função social da propriedade privada rural.

Isso porque sequer existe, conforme já observado, a obediência às regras mínimas de citação e qualificação das partes. Ademais, não há, em nenhum dos casos estudados pelo Relatório em análise houve a designação de audiência de justificação.

A ausência das audiências de justificação nas ações de reintegração de posse revela que o Poder Judiciário não está oportunizando um momento processual adequado para ouvir os membros dos movimentos sociais de luta pela terra. O trecho a seguir bem descreve a gravidade dessa questão:

Considerando que as ações possessórias, quando oriundas da mobilização dos movimentos sociais de luta pela terra, voltada para a ocupação coletiva de imóveis rurais, constitua, nesse contexto, um problema político, a atuação do Judiciário, notadamente a partir da figura do juiz, passa a ter relevância, principalmente pelos efeitos concretos das atitudes dos magistrados nos casos concretos levados à sua apreciação. Basta pensar-se nos riscos de consumação de atos de violência em casos de cumprimento das decisões liminares nas ações possessórias (UFG, 2012).

Nesse sentido, segundo este Relatório, os juízes goianos não se atentam às especificidades dessas ações de reintegração de posse, não observando os requisitos da função social da propriedade rural, descrita no artigo 186 da Constituição Federal de 1988. 

Para além do Código de Processo Civil, ações judiciais devem obedecer a Constituição Federal de 1988. A Carta Magna prevê que, uma propriedade rural só cumpre a sua função social, se cumprir quatro requisitos, concomitantemente, quais sejam: a preservação do meio ambiente, o cumprimento das leis trabalhistas, aproveitamento racional e adequado da terra e exploração que favorece tanto o proprietário, quanto os trabalhadores que atuam na terra.

É certo que o artigo 185 da Carta Maior coloca a produtividade da terra em um patamar superior, no entanto, nem mesmo acerca da produtividade da terra o Poder Judiciário do Estado de Goiás faz levantamentos e constatações, antes de deferir a liminar de reintegração de posse.

Essa função social da propriedade rural representa uma verdadeira função social da terra, que no sistema capitalista é visto, na maioria das vezes, como bem que pode ser alienado, que agrega valor, mesmo se não utilizado (MARÉS, 2003).

Em geral, pelo estudo do relatório em questão, observa-se que, quando um movimento social ocupa um latifúndio improdutivo, o proprietário entra com a ação de reintegração de posse e, desde que ele apresente o título de propriedade, ainda que esta não cumpra com a sua função social, o Poder Judiciário do Estado de Goiás concede a liminar.

Desse modo, pode-se dizer que o Poder Judiciário do Estado de Goiás aplica o Código Civil aos casos de ações de reintegração de posse que envolvem os movimentos sociais de luta pela terra, sem a observância dos ditames do Direito Agrário e da função social da propriedade, prevista constitucionalmente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, a partir dos estudos realizados para a elaboração desse artigo, pode-se concluir que, a História mostra, que no Brasil, desde a época da colonização europeia, existe uma grande concentração de terras nas mãos de poucos, que são os chamados de latifundiários.

A Constituição Federal de 1988, tem como fundamento básico a dignidade da pessoa humana, consagra o direito do acesso à terra e ao desenvolvimento, ao mesmo tempo que estabelece que a propriedade rural deve obrigatoriamente atender a certos requisitos para que cumpra com sua função social. 

Em caso de descumprimento, a desapropriação para fins de Reforma Agrária é medida impositiva, mas que infelizmente não vem acontecendo na prática, pelo menos de acordo com o Relatório de atuação nos conflitos agrários decorrentes de ocupação de terras nos Estado de Goiás, Pará, Paraná e Mato Grosso.

Compreende-se que o direito à terra é um direito humano e fundamental, pois apesar de o ordenamento jurídico civilista consagrar a propriedade como um direito quase absoluto, a Constituição Federal vem impor limites a esse direito, que entra em confronto com direitos mais relevantes.

No entanto, o Poder Judiciário vem atuando nas ações possessórias que envolvem as ocupações de terras no sentido contrário à própria Constituição Federal, desrespeitando preceitos básicos, como o contraditório e a ampla defesa, a qualificação dos réus, a audiência de justificação. Mas, sobretudo, não observando o princípio da função social da terra, concedendo liminares e proferindo sentenças considerando apenas o direito civil.

Constatou-se, também que, na maioria das vezes, o Poder Judiciário do Estado de Goiás não observa a função social da terra e, nem mesmo os procedimentos básicos do Código de Processo Civil, como a citação válida, a qualificação adequada do polo passivo, a designação da audiência de justificação, para ouvir os movimentos sociais de luta pela terra. 

Menos ainda observa os quatro requisitos da função social da terra, previstos no artigo 186 da Constituição Federal de 1988, quais sejam, o uso adequado e racional da terra, a preservação da natureza e a correta exploração de seus recursos naturais, o cumprimento da legislação trabalhista, bem como a utilização da terra para o bem-estar tanto do proprietário da terra, quanto dos trabalhadores.

Sem o cumprimento desses requisitos, a propriedade privada rural deverá ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária, conforme determinado pelo artigo 184 da Constituição Federal de 1988. É por isso que os movimentos sociais de luta pela terra ocupam latifúndios que não cumprem com a sua função social.

A ocupação de terras pelos movimentos sociais tem sido a única modalidade de o Estado desapropriar propriedades privadas improdutivas no Brasil, para destinar à Reforma Agrária. Ainda que injusto, a Constituição ainda prevê que os proprietários improdutivos receberão justa e prévia indenização pela desapropriação da terra.

Ainda assim, o Poder Judiciário do Estado de Goiás ainda parece enxergar o direito de propriedade como sagrado, absoluto e inviolável, nos moldes da Idade Média. Isso porque não observam a função social da propriedade privada rural, antes de aplicar puramente o dispositivo processual civil para deferir a ação de reintegração de posse e expulsar da terra os movimentos sociais.

Assim, pode se concluir, por fim, que no âmbito do Estado de Goiás, o dispositivo que prevê a função social da propriedade como um dos principais limites desse direito individual se torna letra morta na prática, tendo em vista a sua não observância.

A partir daí, ainda surgem diversos outros questionamentos a respeito das ações possessórias que envolvem os movimentos sociais de luta pela terra e a atuação do Poder Judiciário, porque a visão de que quem é proprietário da terra é quem tem o título ainda é majoritária.

Sem considerar se o proprietário utiliza a terra adequadamente, se preserva a natureza, se cumpre as leis trabalhistas, se proporciona o bem-estar dos trabalhadores, até mesmo se é uma terra produtiva e se está sendo utilizada de modo racional e adequado, os magistrados goianos vêm desrespeitando a própria Carta Maior do país.

THE (IN) OBSERVANCE OF THE SOCIAL FUNCTION OF THE EARTH IN POSSESSORY ACTIONS INVOLVING SOCIAL MOVEMENTS IN THE FIGHT FOR EARTH IN BRAZIL

ABSTRACT

This article deals with the (in) observance of the social function of the land in the possessory actions involving the social movements of struggle for land in Brazil. The right of property is provided for in article 5, caput and item XXII, as well as in Title III of the Civil Code, which provides for its protection, and possessory actions are regulated by articles 554 and following, of Code of Civil Procedure. On the other hand, the social function of property is established by item XXIII, of article 5, as well as its rural requirements are set out in article 186, both of the Federal Constitution of 1988. However, through the studies of the Report “The role of the Judiciary in Agrarian Conflicts arising from land occupation by social movements in the States of Pará, Mato Grosso, Goiás and Paraná (2003-2011)”, it is possible to notice that the social function of the land is not being observed in possessory actions, at least in those states. From this, the problem of this article revolves around the non-implementation of article 186 of the CF / 88. The general objective is to understand the social function of land in possessory actions in Brazil. Specifically, it is intended: a) to make a brief historical review of the right to individual private property in Brazil; b) understand the procedures to be adopted in possessory actions involving social movements fighting for land; c) understand the (in) observance of the social function of the land, by the Judicial Power in Brazil. The method used in this research is hypothetical-deductive, through bibliographic and documentary review. The theoretical framework is the studies on coloniality of power, by Aníbal Quijano. The hypothesis is that the Judiciary Branch does not observe the social function of the land, in the possessory actions involving the social movements of struggle for the land, because they are under the influence of the power of the dominant landowning elite.

Keywords: Agrarian Law. Possessory Actions. Earth's Social Function. Property right.

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